quinta-feira, 29 de maio de 2008

Crônica: Já começou a acontecer com vocês?

.....Estávamos as três, como de hábito, papeando na sala de reuniões, quando uma delas pediu à irmã que nos deixasse a sós por alguns minutos, sugeriu que ela fosse pegar um copo d’água para nós. Fiquei surpresa e posta em suspense, na antecipação do segredo que me seria revelado. Por um instante senti até satisfação por ter sido a escolhida para ficar na sala. Quem sabe não ficaria a par de uma rechonchuda fofoca?
.....A irmã se foi e a outra iniciou seu conto. Começou pelo cenário, uma bela chácara no interior de São Paulo, aonde vivia com os pais e os filhos, repleta de árvores frutíferas, um local tão espiritualizado quanto arborizado, ao qual ela realmente havia se apegado. Cogitei se ela pretendia revelar mágoa por eu ter recusado seu convite de visita? Seria isso? Mas sua prosa não revelava rumo claro. Ela alongou-se descrevendo a chácara, cada vez com mais ternura, deixando pender a cabeça para um lado, depois para o outro; olhava para a janela, melancólicamente, como se ali mesmo estivessem as árvores que tanto amava; em certo momento cheguei a suspeitar a formação de uma lágrima no seu olho esquerdo; depois ela olhava de volta para mim, repleta de esperança. Ouvia tudo atentamente, aguardando. Em algum momento, seu tom de voz alcançou coragem e ela começou a explicar que, faz alguns meses, ela dera uma entrada pela chácara, num valor mais do que razoável e...(me veio como um raio, ela falava e eu vi Keller! Ela era Keller, com suas confissões alongadas, da página 348, e eu, que remédio, era o Príncipe Idiota! Estava claro, ela tecia teia para me pedir um empréstimo. Que incrível! Acabara de ler a parte II do livro e a vida me proporcionava esta vivência ao vivo, atualizada!)
.....Voltei à cena, não revelei meu pensamento, talvez somente minha expressão facial tenha se alterado, mesmo contra a minha vontade, já que o fim da prosa eu já tinha em vista. Aproveitei então para saborear sua encenação, o tom que adotou para sua fala, os gestos das mãos, até mesmo a roupa que escolheu usar neste dia - então é assim que as coisas acontecem, pensei. Quando percebi que ela retornava ao tema da beleza da chácara vi que seu embaraço a fazia fraquejar. Lembrei-me que o Príncipe ajudou Keller a atingir seu desfecho. Por pouco não citei Michkin, "Talvez a senhora esteja querendo dinheiro emprestado, não é?" Talvez devesse tê-lo feito. Mas não fiz. Fui má? (notem que essas crises de consciência, de ficar me debatendo sobre o bem e o mal de minhas ações não fazia parte do meu repertório antes do Príncipe Idiota entrar para a minha vida!) Dane-se, não fui má, não sou má (!), deixei-a falar somente pela curiosidade em ver o desenrolar natural da história acontecer, pura curiosidade, nada de maldade!
.....Não demorou muito para ela passar para a relma das desculpas. Desculpou-se antecipadamente pela liberdade que tomou em me trazer este tema, diversas vezes repetiu isso. Eu ouvia. Até que, como se não conseguisse pensar em mais nenhuma disgressão, confessou: "Você teria interesse em assumir a dívida desta chácara?" Claro, imediatamente, ela me disse, que pagaria tudo dentro de um prazo pré-determinado e que a própria chácara serviria de garantia pelo pagamento...(enquanto ela falava, eu pensava na cena de mim, ao lado do oficial de justiça, despejando as boas almas de seu frondoso lar, junto com os pais doentes e os filhos adotivos, todos rumo às ruas da metrópole, coisa absolutamente impensável para qualquer ser humano com consciência)...por fim, ela concluiu que era um negócio absolutamente sem riscos e lançou a pergunta, "O que você acha?"
.....Meu rosto permaneceu impassível enquanto eu pensava na criatividade com a qual ela conseguiu apresentar um negócio que era um barco furado com uma âncora de cem quilos dentro daquela forma maravilhosa. Em seguida, me pus a pensar no que a fez pensar que eu entraria nessa história. Idiotice? Certamente, deve ser essa a impressão que eu a causo. Será que ela não percebia o risco ao qual ela buscava me expor? Quase me ofendi, mas depois lembrei que ser confundida com um idiota não é de todo mal (obrigada Dostoiévski!). Finalmente, pude compreender que em meio ao desespero, o desejo de manter um padrão de vida que não tinha mais condições, o medo de perder o refúgio que a acolhia de uma vida já bastante sofrida, ela simplesmente estava tentando de tudo, atirando para todos os lados, até mesmo o meu. Meus olhos recaíram sobre seus cabelos despenteados com ternura e eu senti dentro de mim essa tal...compaixão.
.....Felizmente, para este propósito, minha condição financeira atual não me permite nem pensar navegar grandes dilemas filantrópicos. Não disponho de dinheiro para emprestar, então a resposta estava já na ponta da língua. Aliás, era tão óbvio isso e ela mesma sabia disso, antes de se aventurar nessa conversa comigo. Sem razão alguma para me sentir culpada, mas mesmo assim com pesar (proveniente da compaixão?), encenei a minha parte da cena. "Você sabe, na minha situação atual..." Estava feito, em menos de dois minutos a resposta negativa estava dada. Ela entendeu, disse que já sabia, mas que resolveu tentar de qualquer forma, afinal, o pior que poderia acontecer era ouvir um "não". Comprometi-me a divulgar fotos da chácara para potenciais investidores em barcos furados, caso conheçam alguém a postos para um suicídio financeiro, façam contato!
.....Sei que, caso semelhante a este, antes da entrada de Michkin na minha vida, jamais ocorrera. Até já recebi alguns pedidos de empréstimos, mas daqueles diretos, tipo: "Fulana, você tem ‘dez pau’ pra em emprestar?" Fiquei assustada – será que o Princípe Michkin é contagioso? Será que sua idiotice pega? Será que a epidemia Michkin se anuncia em São Paulo, irradiando de um foco na Barra Funda! Será que, ao lermos o livro, vamos adquirindo suas expressões e maneirismos, seu jeito tolerante de ser e, logo, aspectos de sua história se infiltram nas nossas? Adaptada? Ou será que é só comigo? Peço-lhes encarecidamente, caros oficineiros, que me respondam com toda a sinceridade – isso já começou a acontecer com vocês!!!!!!!!!!!!
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Autora: Deborah

Um comentário:

Bárbara Apalg disse...

bom déborah, se no seu caso estas coisas começaram a acontecer ou você começou a percebe-las a partir de agora, para mim, ao ler este livro, (ainda mais desta maneira tão impar...em um grupo de pessoas cheias de questões e anseio pela alma humana)a profecia das minhas questões pessoais e existencias começarama se elucidar... (ou se embaralhar mais ainda) tenho uma amiga epilética...melhor amiga...que hoje não nos falamos mais por questões materias (não é nada de empréstimo, mas é relacionado ao dinheiro, nem a ele de fato mas a idéia dele, a sua representação, entende?. Nossa amizade que começou pela identificação das "almas" sucumbiu pela "ética da grana" ... e as questões do amor cristão, do verdadeiro amor universal pregado pelo cristo, foi o tema do encontro carnal entre eu e o pai da minha filha, que resultou em um bêbê que completou um ano de vida exatamente no dia 28 de abril, dia do início da oficina, início dessa contaminação mychkiniana... está acontecendo comigo , já aconteceu, e não tenho a mínima idéia de onde isto irá dar... querida idiota. coincidência ou genialidade de um autor que coloca em uma obra, tão profundamente todas estas questões do humano e o ideal do ser.

Bárbara.